quinta-feira, 31 de agosto de 2017

A memória Histórica, Charlottesville e o erro da Esquerda americana.

A marcha “Unite the Right” que pretendia unir as várias facções da Direita americana (onde se encontravam membros da chamada Alt-right, Neo-confederate, Traditional Workers Party, e os The Knights Party) e, ao mesmo tempo, protestar contra a remoção de uma estátua de homenagem ao General da Confederação Robert E. Lee, foi contra posta com protestos por parte dos já famosos grupos Blacks Live Matter (BLM) e Antifa, para além de apoiantes individuais dos dois lados
            O Argumento do lado do movimento BLM e Antifa era de que a estátua do General Robert E. Lee significava racismo e supremacia branca pela parte Sul dos Estados Unidos da América (EUA), necessitando assim de ser removida, provocando um clima de perigo e ameaça para minorias, isto segundo os grupos que se identificam à esquerda.
            Em quanto não posso negar (quer por senso comum, quer por não ter estado presente) que não existam suprematistas brancos e racistas do lado reconhecido como de Direita, não posso deixar de apontar que do lado do movimento BLM e Antifa existem enormes e crassas faltas de conhecimento que levam a que o acto de remover a estátua do General Robert E. Lee leve a ramificações graves na sociedade americana.
            Os movimentos de BLM e Antifa falharam redondamente, ou não quiseram de maneira alguma, em perceber o simbolismo da estátua do General e da Guerra Civil Americana para os Estados que fizeram parte da Confederação.
            Vejamos então o que tudo isto significa.
            Todos os Estados, mais novos ou mais velhos, possuem pilares onde assentam a sua identidade, ou seja, onde legitimam, quer para meios internos ou externos, a sua legitimidade a existir como entidade autónoma e reconhecida.
            O caso de Portugal é um dos melhores, desde á Reconquista iniciada há quase 1000 anos, passando pela conquista de Lisboa, os Descumprimentos, o domínio dos Filipes de Espanha, a Restauração, a queda da Monarquia e estabelecimento da República, a Guerra Colonial, o 25 de Abril, e todos os tratados, homens e acontecimentos derivados de toda a nossa história são marcos que erguem pilares da nossa identidade, independência como Estado e legitimam as nossas leis, a nossa existência e o facto de podermos dizer que somos quem somos, quer tenhamos gostado ou não, quer concordemos ou não, durante centenas de anos, os portugueses têm vindo a construir a sua identidade, o que permite uma maior paz interna e coesão nacional.
            No caso dos EUA o caso é muito diferente.
            Os EUA estabelecem-se como um Estado independente a 4 de Julho de 1776 (há 241 anos), o que faz de si um dos Estados mais novos do globo, este período de tempo é relativamente pequeno no que toca á construção de uma identidade nacional, especialmente quando os EUA são na sua esmagadora maioria um país de emigrantes, sendo que ser 3ª geração americana é considerado como ser americano há muito tempo.
            Para agravar ainda mais a situação, os EUA sofreram enormes mudanças internas ao logo dos anos de existência, tiveram que combater os nativos americanos, os mexicanos, os franceses e tiveram uma guerra civil, isto tudo antes da primeira guerra mundial (128 anos).
            A guerra civil americana decorreu de 1861 a 1865, tendo os EUA 85 anos de existência, muito pouco tempo para um Estado amadurecer, especialmente nas condições dos EUA.
            A Confederação forma-se em oposição ao governo Republicano da União liderado por Lincon, este que visava uma proibição da proliferação do trabalho escravo nos Estados do Sul, os Estados do Sul (Virgínia e a Sul deste Estado) possuíam uma economia baseada na produção de algodão, este que derivava na sua esmagadora maioria de plantações que eram trabalhadas por escravos.
            Desta forma pode-se perceber como os Estados Confederados aparecem como os racistas, visto que pretendiam proteger a escravatura que, na sua maioria, assentava sobre Africanos (Não podemos também esquecer que é verdade que também existiam, no Sul, negros que teriam escravos).
            É de notar no entanto que, apesar de existir racismo, os escravos eram vistos como um meio de produção barato, caso existisse um outro meio mais rentável ter-se-ia tomado esse meio, no entanto não podemos afirmar que todos os donos de escravos ter-se-iam desfeito dos seus escravos se assim fosse.
            Desta forma podemos já desarmar os grupos BLM e Antifa quanto às suas generalizações de Racismo totalitário por parte de todo o Sul.
            Os Estados Confederados viam a sua economia ameaçada, e tinham razão, tanto que no final da guerra e com a abolição da escravatura o Sul mergulhou numa crise económica de tais proporções que ainda nos dias de hoje se sente, passando de ser uma das zonas mais ricas do mundo para uma das mais pobres, isto pela incapacidade ou falta de vontade da União de arranjar meios alternativos para a produção da principal indústria do Sul.
            Esta queda levou a que as populações do Sul, para além da ocupação militar que sofreram, perdessem imensa qualidade de vida, quer os proprietários de plantações quer as populações que nunca teriam tido escravos, afectando igualmente as populações escravizadas que a guerra visava libertar.
            Mas passemos á memória histórica e ao que significa esta guerra para as populações do Sul.
            A Guerra Civil Americana ficou assim conhecida porque a União ganhou a guerra após a rendição do General Robert E. Lee.
            No Sul, e para os Estados Confederados em 1861, a Guerra Civil, chamou-se de 2ª Guerra de Independência.
            Isto tem muito que se lhe diga e um impacto para os Estados que fizeram parte da Confederação, impacto este completamente desconhecido ou negado/descartado pelos grupos BLM e Antifa, e que explica muitas das reacções contra estes grupos das populações actuais do Sul.
            No início da década de 1930 muitas das estátuas que estes grupos querem derrubar foram erguidas em homenagem aos militares que perderam a sua vida, ainda com Veteranos vivos, Veteranos esses que combateram pelo seu Estado.
            Aqui é que começa a ficar interessante.
            Robert E. Lee foi chamado a assumir o comando de 75 mil homens para combater os revoltosos do Sul (assim eram chamados pelo governo a União). Robert E. Lee, ainda Coronel, recusou assumir este Comando. Será que era Racista?
            De maneira nenhuma, Robert E. Lee libertou todos os seus escravos e era famoso por ser contra a escravidão. O então Coronel recusa esta enorme Comissão porque o Exército que estava a ser levantado teria como principal missão invadir territórios americanos e ocupar os mesmos como se de uma terra estrangeira fossem e, um desses territórios era o Estado da Virgínia, Estado do qual Robert E. Lee era originário.
            O Coronel Lee recusa-se a assumir o Comando destes 75 mil homens porque não se atreve a invadir a sua casa, segundo o mesmo, e apesar de ser um militar leal que ama os EUA, este militar ama mais a sua casa, e no final do dia a sua lealdade assentava com a sua casa primeiro e depois com os EUA.
            Este era um sentimento que era geral no Sul, cada homem amava mais o seu Estado que os EUA, e viam o governo Republicano como uma ameaça á sua casa, assim, e em reacção ao que agora percebiam como sendo um invasor externo, os estados do Sul uniram-se na conhecida Confederação.
            Esta “2ª Guerra da Independência” como ainda é conhecida no Sul é, para falta de mais algum, o pilar central da identidade Pátria dos Estados do Sul, a negação desta sua herança, quer concordem ou não com ela, é negar a sua existência como indivíduos e como Estado.
            A remoção da Estátua de um Herói nacional como o General Robert E. Lee que é talvez visto como o D. Afonso Henriques dos Estados do Sul seria, de certo modo, como a remoção da estátua de Viriato em Viseu ou como a estátua de D. Afonso I que está em Guimarães, argumentando que é uma ofensa contra uma minoria.
            Seria impensável a remoção destes monumentos portugueses para o povo que se identifica como português, tal como a remoção da estátua do General Robert E. Lee é impensável para uma grande e forte população dos Estados da antiga Confederação.
            Apesar de existirem racistas e supremacistas brancos nos movimentos à direita que se apresentaram em Charlottesville, muitos dos que se apresentavam contra o grupo BLM e Antifa faziam-no, não por serem racistas como afirmam esses grupos, mas porque vêm a sua identidade, história e liberdade a serem atacadas por identidades que eles mais uma vez começam a perceber como exteriores.
            Estes factos são completamente ignorados pelos grupos reconhecidos como à Esquerda do espectro político, visto que desarmam as suas narrativas de racismo e xenofobia muito rapidamente.
            Qualquer população que quer ter estabilidade no seu seio tem que ter pilares identitários que não podem ser simplesmente destruídos por narrativas fracas, para mais num contexto como é oi dos EUA, isto apenas gera mais conflito.
            A História serve, em parte para isto, para assegurar que, compreendendo a história de uma comunidade, coisas destas não aconteçam.

            Deve ser dito que, este tipo de manifestações, não só em Charlottesville, mas por todo o EUA, têm sido a causa de mortes desnecessárias, mortes que neste caso, com um conhecimento correcto da história e do seu impacto poderia ter poupado muitos problemas, estragos, feridos, um morto e a provocação de um conflito contra populações que se calhar, até agora, se teriam mantido à parte destes confrontos mas, vendo ameaçada a sua identidade, herança e história se vêm, mais uma vez, a ter que se levantarem.


terça-feira, 29 de agosto de 2017

A Coreia do Norte, A China, os EUA e os seus amigos; Uma análise de realismo estrutural

A Coreia do Norte voltou a lançar um míssil que sobrevou o Japão. É a segunda vez que o faz este ano e é uma acção agressiva, obrigando-nos a pensar no curso futuro dos acontecimentos. Analisemos assim o que se está a passar, a luz da teoria neo-realista das Relações Internacionais. 

A península coreana é o único lugar no mundo onde a Guerra Fria persiste e se existe algum lugar onde o pensamento neo-realista de Waltz e Mearsheimer é seguramente válido é aqui. O neo-realismo, ou realismo estrutural, definido por Kenneth Waltz, afirma que os estados são agentes racionais que actuam no seu interesse próprio dentro de um sistema em anarquia e em que cada Estado tenta assegurar a sua perpetuação e manter um equilíbrio de poder. 

O realismo estrutural é desenvolvido a partir do realismo clássico. Para os realistas estruturais, também nomeados como neo-realistas, o sistema político internacional é tal como para o realismo clássico uma luta pelo poder. A grande distinção é que estes não atribuem esse facto à biológica condição humana egoísta e belicista, mas sim a estrutura do próprio sistema internacional, isto é, a procura de poder não está “hard wired” no ser humano como referiu Mearsheimer, constitui sim uma reacção a um sistema onde vigora a auto-ajuda derivada da anarquia, sendo esta caracterizada por não existir acima dos Estados mundiais, nenhuma entidade que possa ter a capacidade de os punir ou obrigar a algo.

Nesta teoria, os estados são actores que competem dentro de um sistema anárquico para manter seu poder e estabilidade. É a anarquia que define a estrutura onde estes actuam. O sistema regional do Leste Asiático tem uma dinâmica de segurança muito semelhante aquela que prevaleceu na Guerra Fria durante a segunda metade do século XX. Como a Guerra da Coreia terminou com um acordo de armistício e não com um tratado de paz, a Guerra Fria na península continua tendo produzindo uma proliferação nuclear.

A crise aumentou desde que a Coreia do Norte (RPCN) anunciou em Maio de 2009 que não mais aceitava mais o armistício. Como durante a Guerra Fria, as relações externas na região baseiam-se em análises de custo-benefício supostamente racionais e na execução das políticas apropriadas a essa mesma racionalidade. O foco dos Estados do Nordeste Asiático tem sido gerir os resultados inerentes ao que tão bem foi caracterizado pelo conceito de dilema  de segurança; crescimento / proliferação militar e manutenção de um equilíbrio de poder para evitar a guerra.

Assim como durante a Guerra Fria do século XX entre os EUA e a URSS, o objectivo de cada ator não é envolver-se em guerra e sofrer seus custos e consequências; Em vez disso, cada estado está mais interessado em prevenir a guerra e manter a estabilidade regional nas suas esferas de hegemonia.  No entanto, o sistema regional do Leste Asiático é diferente da bipolaridade da Guerra Fria; Em vez disso, tem uma dinâmica multipolar, na qual a China, a Coreia do Sul e os EUA – as vezes através do Japão -  competem pela hegemonia regional e procuram ter boas relações uns com os outros ou tentam no mínimo minimizar as hostilidades. Esta lógica reflecte-se nas políticas realistas defensivas da China e da Coreia do Sul, enquanto a Coreia do Norte adoptou uma abordagem mais ofensiva de afirmação de poder.

O realismo ofensivo é a estratégia perseguida pela Coreia do Norte, teoria com a marca de John Mearsheimer. Esta teoria afirma que os Estados procuram maximizar o poder através da capacidade militar, como é visível nas ambições nucleares da Coreia do Norte. Quer a RPCN esteja ou não em busca de hegemonia na região, o facto é que a sua nova capacidade nuclear é a única ferramenta de política externa efectiva que dispõe; sem armas nucleares, a “marginal” Coreia do Norte estaria totalmente a mercê dos ataques provenientes dos outros actores regionais. A RPDC actuou como um estado realista clássico na construção da sua força nuclear em resposta às ameaças à segurança do regime de Kim Jong-Un. 

O medo de um confronto com os EUA foi exacerbado no final da década de 1960, quando os EUA colocaram armas nucleares no solo da Coreia do Sul. Havia nessa altura a preocupação de Pyongyang de que os aliados comunistas da Coreia do Norte não lhes forneceriam mais o apoio desejado, pois observaram a crise dos mísseis cubanos, a Revolução Cultural Chinesa e a divisão Sino-Russa. O ambiente de segurança da Coreia do Norte deteriorou-se com o fim da Guerra Fria: perdeu financiamento da URSS, a Coreia do Sul cresceu economicamente e militarmente, a China concentrou-se na sua própria economia e alcançou a Coreia do Sul e chegou a segundo maior país do Mundo, e a Rússia reconheceu a Coreia do Sul, afastando-se da RPCN. Sem poder se apoiar nos soviéticos e com o seu programa de armas convencionais em declínio, as armas nucleares ofereceram à Coreia do Norte segurança e, portanto, eram uma opção lógica. Finalmente, com a invasão dos EUA no Afeganistão e no Iraque, Pyongyang preocupou-se que poderia ser o próximo foco da política externa americana e, assim, criou sua dissuasão nuclear. Ao contrário da opinião da Prof Diana Soler, Waltz não se enganou e a prova é o que se tem passado na região leste asiática. O equilíbrio nuclear evitou a guerra até agora.

Com as provocadoras ameaças de Trump a um regime acossado tudo isto se agudizou. Ameaças intencionais e que são parte da estratégia para a Asia.

O realismo defensivo compartilha os princípios estruturais do realismo ofensivo; ambos focam na importância de equilibrar os comportamentos num sistema internacional caótico, porque anárquico. No entanto, o realismo defensivo propõe que a busca desenfreada do poder seja contrabalançada e, portanto, não seja desejável. A China e a Coreia do Sul reagiram ao realismo ofensivo da Coreia do Norte com uma política externa realista defensiva, visando equilibrar o comportamento agressivo desta e exigir restrições, agindo, no entanto, também com suspeitas sobre as intenções do Japão, dos EUA e mesmo entre si.

A preocupação mais urgente da região é evitar um conflito entre Pyongyang, Seul ou Tóquio, e é este desejo que impulsiona as relações entre a Coreia do Norte e os seus vizinhos. Um conflito na região levaria a vários desastres derivados da mudança de regime ou do colapso da Coreia do Norte, desastres esses que incluem 1) uma crise de refugiados para a China e para a Coreia do Sul 2) uma crise económica para Seul que teria de absorver a Coreia do Norte como a Alemanha Federal fez a Democrática; 3) uma crise económica para a China e para o Japão, uma vez que a região instabilizava e experimentaria a fuga de capitais e investimentos sem precedentes. Todas as partes percebem que entre as opções a contenção da Coreia do Norte é o mais atraente resultado porque permite controlar, ou pelo menos influenciar, Pyongyang. Esta análise custo-benefício é o quadro em torno do qual a política realista defensiva é pensada na China e na Coreia do Sul.

A China e a Coreia do Sul - e mesmo Tóquio – têm um interesse total numa segurança compartilhada que impeça uma guerra na península coreana e evite uma mudança de regime na Coreia do Norte. Enquanto a Coreia do Norte se comportava de forma realista ofensiva à medida que se nucleariza na tentativa de acumular e exibir poder, a República Popular da China e a Coreia do Sul responderam com políticas realistas defensivas, destinadas a manter a estabilidade na península coreana com a intenção de evitar conflitos indesejados. 


Os Estados continuam a actuar em função do seu interesse percepcionado com ênfase na segurança e nas relações de poder regionais e mundiais. É isto que nos ensina o realismo estrutural.  Para os EUA de Trump, coadjuvado nas decisões por homens como Mc Master e James Mattis, o objectivo continua a ser, a nível Mundial, evitar que a China adquira a hegemonia, nem que para isso se desestabilize uma região inteira. Como disse o experiente Ministro Russo dos Negócios Estrangeiros, Lavrov, “I hope common sense will prevail," certamente da parte do elo mais forte!  Este é só mais um capítulo de um livro que estamos a ver escrito em tempo real.


domingo, 27 de agosto de 2017

Pátria, Estado e Nação. Uma pequena aproximação ao seu significado.

As palavras "Pátria", "Estado" e "Nação" têm sido, nos últimos anos, usadas em defesa de diferentes grupos e das suas acções, maioritariamente com chavões para desculpar e legitimar acções e ideologias, como tal, é necessário um esclarecimento quanto ao significado destas palavras que, carregam consigo um enorme peso.
A pátria pode-se começar a compreender como a memória de um colectivo de homens e mulheres que, da perpetuação de mitos e ritos associados a esses mesmos mitos, que conseguem erguer uma imagem e um significado com o qual o individuo se identifica e se faz representar, esta pátria, apesar de se apresentar e de assentar na representação de cada individuo que com ela se identifique e que dela faça parte, esta é uma herança comunitária e que por sua vez se torna em uma das chaves da coesão cívica, tornando-se a Pátria e ou sentimento que advém desta na base do que será a comunidade representante desta.
A pátria assim será a “virtude cívica[1], deixando de criar uma ligação aos instintos básicos de subsistência física, ligações estas que seriam primeiramente consigo e com os membro imediatos da sua família, passando a pátria ser algo de mítico e por vezes espiritual. Esta evolução no psicológico humano que se pode rever já na Grécia Antiga, quando se referiam à Cidade-estado como a Pátria, evolui no sentido de abranger uma comunidade que se vê identificada por essa Pátria (Cícero afirma que esse conjunto é a Plebe e a Aristocracia) e que abrange outros pertencentes a essa pátria. Conseguindo-se assim entre os constituintes dessa pátria a boa gerência da “coisa pública[2].
Com a modificação deste pensamento, a pátria é tomada então com uma herança, algo anterior a cada homem e que ele recebe no acto do seu nascimento, como tal esta pátria torna-se susceptível de ser defendida e mantida como foi recebido, tal como de ser transmitida às gerações futuras, assim sendo ela é algo intemporal, mas também é algo físico, a pátria é onde se nasce, uma terra, a qual normalmente será tida como a terra dos país, mas a pátria de hoje em dia pode ser adoptada, sendo que nesse campo entra-se numa área de afeição e ideia do gosto de cada um. Pode-lhe ser atribuído o valor Paternal ou Maternal, sendo que a pátria é representativa de todos, 
Na contemporaneidade esta pátria assume um carácter mais feminino e maternal, sendo que em épocas anteriores mais dominadas pelo homem esta assumia um carácter mais Patriarcal, tal como na antiguidade Clássica na qual o chefe e representante da família era o “Pater Familias”, daí a radicação da própria palavra Pátria. Esta conexão familiar torna então, todos aqueles que se identificam com esta mesma “mãe” ou “pai” e que a defendem, que se identifiquem com a mesma mitologia e ritos, seja tidos como “irmãos[3] tornando uma comunidade como uma enorme família, gerando como já foi dito a base para a Nação e por consequência a formação do Estado.
Esta pátria susceptível de ser herdada e de se entregar às gerações futuras tem algo físico que a represente sendo que, essa herança se relaciona com a terra dos pais, essa terra serve na ideia de pátria como elemento agregador, elemento agregador esse que levou a pátria a erguer-se do sei familiar para a chamada “patria communis[4], mas ao longo do tempo tem tomado um significado mais abrangente, sendo que hoje em dia muitas vezes dentro da pátria se incluí não só a terra em que se habita, mas também a língua que se fala e se escreve, as artes como musica, pintura e escultura fazem parte da pátria, monumentos e mitologias, a história de um país faz parte hoje da Pátria.
O conjunto dos indivíduos que fazem parte da pátria constituem a Nação, sendo que hoje me dia é complicado por vezes fazer a diferenciação entre Pátria a e Nação, essa difícil distinção torna-se fácil de ver no chamado Patriotismo Nacionalista que leva às revoluções liberais, que leva a extinção ou separação com antigos regimes como foi a Revolução Americana ou a Revolução Francesa, a exemplo disto o caso do Exército português é um dos melhores para perceber, quando o exército carregava sobre o inimigo gritava “Por S. Miguel e Portugal” estando a pátria simbolizada em S. Miguel, Portugal forma-se depois de uma série de batalhas com a presença da divindade na decisão favorável destas batalhas a favor dos portugueses o que permitiu o “nascer” da nação portuguesa, ao que esta é a herança que Portugal recebe, a sua concepção é por vontade divina assim S. Miguel no grito de guerra português representa a pátria, a Mitologia por de trás da Nação que é aqui representada por Portugal, Portugal que é encabeçado pelo Rei, o Rei é o pai da nação, tem de aplicar a justiça, manter a paz e criar condições para a prosperidade, o Rei representa assim a população que se identifica com essa pátria e essa mística, mas o Rei representa também a lei que é aplicada no território da Pátria. Aludindo a um sentimento de pretensa á terra um sentido também de pertença a uma entidade que rege o território, mais uma vez Cícero aqui distingue estas duas entidades com que o homem se identifica, uma por nascimento e outra por escolha “uma pátria geográfica, e outra de direito”.[5]
Claro que aqui também se pode falar de que o Rei seja o estado, e é certo que a Nação pode também se definir como a instância que faz a ligação entre a pátria e o estado, mas é claro que a definição política de estado só se firma no final do Séc. XVIII, e inícios do Séc. XIX, neste período conturbado em que existiram várias experiencias no âmbito da governação durante as revoluções liberais, nas quais a aclamação ao patriotismo levou as massas a legitimar o movimento revolucionário como vindo tendo o propósito entre outros o de salvaguardar a nação contra um estado que a tentava deturpar, dete modo entende-se que “a pátria é o alfa fundador de todas as filiações étnico-culturais e políticas[6], ao que, nestes Estado-Nação, o estado como elemento dirigente muitas vezes tentava legitimar o seu poder como vindo da pátria e por consequente tentaria moldar a nação ao seu tipo de estado dando-lhe veracidade. Pode-se assim ver a nação como um movimento político já que os povos possuem uma vontade que se tenta passar para o governo dessa nação, mas claro que pode não ser assim. Existe no entanto na nação a ideia politica.
A ideia de pátria e uma nação formam-se em contra posição com outra pátria e nação, o “nós” só pode existir se existir o “eles”, o caso português é claro nisso, por vezes esta diferença foi apenas vista em termos de religião como foi o movimento da “Cristianitas” na Idade Média, que reagia contra o Islão, recorrendo a Europa à formação Greco-Romana, em que a ideia de patria communis extravasa também para estas ideias medievais.
É interessante perceber os estados multinacionais, a exemplo disso no início do Séc. XIX possui-se imensos casos desses, como o Reino da Inglaterra e da Irlanda, o Império Otomano e o Império Austro-húngaro, que debaixo de um Estado, existem mais que uma nação que se irão possuir as suas histórias, mitologias e ritos. “Pelo menos até á Revolução Francesa e, sobre tudo, a partir do século XIX, existem pátrias que não são, não querem ser, ou não as deixam ser nações. Assim sendo, pode defender-se que a pátria e, em particular, a pátria comum é logicamente anterior á nação politica moderna que dela se nutre[7]. Aqui se pode ver e em mais preciso o caso do Império Austro-húngaro, o exemplo de um Estado que tenta moldar a nação à sua imagem, confrontos existem dentro deste Império que irão possuir o seu clímax na primeira guerra mundial. Estes estados-nação que tentaram criar modelos de governação totalitário radicam no Séc. XIX com os tal estado-nação, mas existiu logo desde as revoluções liberais quem fala-se contra a “tendência monopolizadora do novo patriotismo cívico e nacional[8], como Barruel, Joseph de Maistre e De Bonald, que falavam de um «regresso às constituições históricas, pois estas teriam respeitado a autonomia e os patriotismos das “pequenas pátrias”»[9]
Contrariando esta ideia de “nós contra eles” também existe uma nação que sendo constituída por pequenos estados irá, no final do Séc. XIX ser uma única nação, debaixo de um único estado, a Itália, que durante vários anos consegue a unificação de vários Estados, formando a unidade politica da Itália. Mas muito antes disso em 1621 no que é hoje Espanha, o Duque de Olivares escreve a Filipe IV que se digne a unificar todas as suas posses e que passe a ser Rei de uma Nação.
Existe também a ideia Europeia de civilização, que é defendida inicialmente por Quizot, um homem moderado e liberal.
Hoje esta ideia de uma nação europeia é apoiada por facões mais liberais de cada nação, mas existem grupos nacionalistas, nas mais suas variadas faces (nacionalismo liberal, o social nacionalismo, etc.) que invocando a memória da sua pátria e munindo-se de desculpas patriotas resistem a este movimento de aglomeração, tentando manter a sua individualidade. Tem de ser tido em conta no entanto que “se todo o nacionalismo se escuda num patriotismo (porque toda a nação requer uma pátria, pelo menos), nem todo o patriotismo foi (e é) um nacionalismo[10].
Esta individualidade é marcada fortemente no caso da Nação portuguesa.
O português é português como Nação, Estado e Pátria porque é diferente, independente de outro, no caso de Portugal durante muito tempo o outro era Castela que depois no Séc. XVII se torna Espanha. Portugal foi o primeiro estado europeu que definiu as suas fronteiras que ainda hoje as mantém isso ajudou a criar mais um factor de pátria e de agregação ao território. Esta ideia de conquista do território e de progressão para além mar assentando na ideia de que estamos sós e de que estes avanços funcionam de baixo de uma óptica feudalista, que apenas haveria de cair nas revoluções liberais e com a Constituição de 1822, a partir desta data só haveria em 1974 outro acontecimento que marcaria a memória e que seria uma marca guardada pela Nação, uma revolução sem sangue, que nos daria uma total república na qual “A ultima versão do verbete demarca a República, como regime politico, da semântica tradicional de coisa pública ou Commonwealth. É que, se, por um lado, ela é sinónimo de «Estado em geral, qualquer que seja a forma de governo; o que respeita ao interesse geral dos cidadãos; v.g., Convém á República que todos trabalhem»”[11].
O processo na fundação do que será Portugal, assenta primeiramente na ideia de reconquista cristã, liderada a pátria e a nação pelo estado monárquico que se apoia no feudalismo, criando-se uma individualidade contra Leão e Castela que se propagandearia e se lutaria na crise de 1383-85 com D. João I. Estas lutas tanto pela reconquista cristã da Península Ibérica como a vitória de D. João I na crise de 1383-85, pode talvez ser visto na definição de nacionalismo do Oxford English Dictionnary de 1833, que define nacionalismo como a “doutrina segundo a qual certas nações são o objecto da preferência divina[12]
Esta individualização e luta por uma Nação e Pátria independente gerou outra lenda constituinte da pátria portuguesa, que será característica do messianismo que na nossa nação se afirma na figura de D. Sebastião, o rei que foi e que se espera que volte, mas que se sabe que não volta, a memória que se fez parte integrante da pátria e que a nação faz questão de guardar para se afirmar como diferente.
Quando se geram os conflitos liberalistas[13] em Portugal que irão culminar na guerra civil, irá haver um “confronto entre o internacionalismo e o nacionalismo, tão visível no iluminismo e na reação aos iluministas, nos aderentes á Revolução Francesa e nos contrários, nas duas facções da guerra civil, no internacionalismo socialista e da reacção à sua implantação[14], aqui se tenta por parte de D. Pedro IV de criar um Portugal europeu, D. Pedro que se torna nos Messias do mundo contemporâneo, sendo que desde as Revoluções Liberalistas os Messias têm tomado a pele de dirigentes políticos e estadistas, sendo que a sua ideia de redenção se torna no mundo contemporâneo “essencialmente económica”, para mais desde esta altura o Estado tem criado a ideia de neutralidade da Nação portuguesa é levada a cabo devido a essa mesma ideologia económica messiânica, esta ideologia decorre das nossas vulnerabilidades e da crónica dependência de outras potências que foi crescendo especialmente durante as guerras Napoleónicas, “Porém esta dependência para a neutralidade choca-se com a nossa própria fraqueza, porque não tendo força suficiente para suficiente para sermos neutrais, acabamos por optar, ou seja, por deixar de o ser[15], a exemplo disso temos a Segunda Guerra Mundial.
A Individualidade da Nação e Estado português pode muito bem ser exemplificado num poema de Fernando Pessoa chamado de nevoeiro:
“Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, / Define com perfil e ser / Este fulgor baço da terra / Que é Portugal a entristecer / Brilho sem luz e sem arder, - Como o que o fogo - fátuo encerra. / Ninguém sabe que coisa quer, / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem. / (Que ânsia distante perto chora?) / Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro... / É a hora!”[16]
O Estado é, por encargo dos seus poderes o órgão governador de uma sociedade politicamente organizada, ou mais precisamente, é uma colectividade fixa num território, na qual existe uma diferenciação entre governantes e governados e uma autoridade soberana. O elemento essencial e específico de todo o estado é pois, o poder soberano, poder este de formular leis e fazer cumprir as mesmas.
O Fim do Estado é realizar o bem comum dos cidadãos e é para atingir esse fim que o Estado faz as leis e formula o Direito[17]
No que toca ao conceito de Nacionalismo é referido em 1945 na reedição do Morais como “preferência, por vezes exclusiva, por tudo o que diz respeito à nação de que se depende[18], ou seja, é a defesa dos interesses da nação.
A ideia de que o Estado é uma forma de autonomia estará demonstrada desde 1890, momento em que se consolida a ideia de Estado-Nação em Portugal, Fernando Catroga afirma que em 1890 a ideia de Estado Nação seria a de um “conjunto dos cidadãos, e também o território ou circunscrição política que constitui um Estado independente, regido por leis próprias com um governo absolutamente autónomo[19]
            Assim, sendo o Estado a entidade regulamentadora da individualização de um povo, e o responsável pela sua conduta e seu guardião, o Estado é um resultado da própria nação, sendo que a cada Estado corresponde uma Nação, claro que isto não se verifica em todos os casos, a vertente imperialista que foi combatida em todo o Séc. XX em África e na Ásia demonstra isso, mas essas mesmas novas nações que nascem do jugo imperial, fará-lo-ião segundo Catroga, protegidas pelo “princípio wilsoniano segundo o qual a cada nação deve caber um Estado, e irromperá dos escombros dos impérios multiculturais[20].
Hoje em dia os vários países, sobre tudo os europeus não se podem afirmar estanques, e com tal as pessoas que circulam de outros países para a Europa e que aí se fixam criam uma resistência á uniformização de consciências.

         


[1] CATROGA, Fernando; PÁTRIA, NAÇÃO, NACIONALISMO; P.13.
[2] P.14.
[3] CATROGA, Fernando; O Afecto das Palavras in Ensaio Respublicano; FFMS; p. 12.
[4] CATROGA, Fernando; PÁTRIA, NAÇÃO, NACIONALISMO; P.12.
[5] CATROGA, Fernando; PÁTRIA, NAÇÃO, NACIONALISMO; P.14.
[6] CATROGA, Fernando; PÁTRIA, NAÇÃO, NACIONALISMO; P.27.
[7] CATROGA, Fernando; O Afecto das Palavras in Ensaio Respublicano; FFMS; p. 21.
[8] CATROGA, Fernando; PÁTRIA, NAÇÃO, NACIONALISMO; P.33.
[9] CATROGA, Fernando; PÁTRIA, NAÇÃO, NACIONALISMO; P.33.
[10] CATROGA, Fernando; O Afecto das Palavras in Ensaio Respublicano; FFMS; p. 21.
[11] CATROGA, Fernando; O Nacionalismo in Ensaio Respublicano; FFMS; p. 21.
[12] CATROGA, Fernando; PÁTRIA, NAÇÃO, NACIONALISMO; P.41
[13] Quanto a utilização de expressões patrióticas Fernando Catroga afirma que: “… a proliferação de expressões de cunho patriótico, que tiveram uma grande utilização durante as invasões francesas e, depois, no decorrer da revolução liberal de 1820-1822, recebia guarida no dicionário.” P.45.
[14] BARRETO, António; Portugal in Da Estratégia; Tribuna da História; Lisboa; 2010; p.323.
[15] BARRETO, António; Portugal in Da Estratégia; Tribuna da História; Lisboa; 2010; p.334.
[17] AFONSO, A. Martins; Princípios fundamentais de Organização política e administrativa da Nação; Papelaria Fernandes; Lisboa; p. 13.
[18] P.47
[19]CATROGA, Fernando; PÁTRIA, NAÇÃO, NACIONALISMO;  P.47
[20] CATROGA, Fernando; PÁTRIA, NAÇÃO, NACIONALISMO; P.51.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Reviver o passado no Afeganistão ou os estranhos poderes da sala oval

Donald Trump anunciou ontem a manutenção das tropas norte americanas no Afeganistão, salientando mesmo a necessidade de se reforçar o contingente norte-americano neste país. Isto é surpreendente e, no meu entender, lamentável.

Interessa-me assim perceber o que levou o presidente americano a se contradizer em relação a tudo o que disse sobre este assunto desde 2011. Reflectindo chego a conclusão que a razão se chama China.

Trump desde o início da sua presidência que apontou a China como o grande challenger aos interesses norte-americanos no Mundo. Trump quer os EUA “grandes outra vez” no palco mundial e a China é – muito mais que a Rússia ou a EU – o grande problema com o seu poderio demográfico, financeiro  e económico. Xi Jiping tem se esforçado por aumentar a sua influência no Afeganistão, o que tem sido bem acolhido pelo governo afegão, seja ao nível económico seja diplomático, mediando o conflito afegão com o paquistão. Para Trump, estas são más noticias e toda a instabilidade que possa colocar na região, prejudica a economia regional e em particular a China e os seus esforços de influência.

A situação no Afeganistão é hoje extraordinariamente complexa. Não existe consistência ao nível do governo afegão, incapaz de se afirmar decididamente como estruturante actor estatal neste território, de onde se deduz o capital falhanço de anos e anos de intervencionismo. As quezílias entre os talibans são enormes e o ISIS encontra aqui também território propício para recuperar das derrotas que teve no Iraque e na Síria recentemente.

Neste contexto, os EUA deveriam deixar a situação afegã para a Rússia, a China e os estados locais resolverem, forçando estes países, que possuem grandes interesses estratégicos na região, a assumir o fardo de resolver a situação ou a viver com as consequências. Ao contrariar este óbvia estratégia Trump – e McMaster que acredito seja quem está por detrás de tudo isto - assume que pretende a instabilidade e a maquina de guerra oleada, nem que isso custe mais vidas a soldados norte-americanos.

Trump definiu esta fase da missão no Afeganistão como de "killing terrorist", e não de “…nation building again,”. O que isto garante, no meu entendimento, é que mais terroristas serão criados e a missão nunca acabará. Referiu ainda o presidente americano que os EUA devem policiar os países do outro lado do Mundo dado que eles podem dar abrigo aos terroristas. Estes são pressupostos intervencionistas que me são muito familiares; ouvi Barack Obama e Hillary Clinton repeti-los recorrentemente. Estes são pressupostos errados como foi provado no concreto.

Muitas vezes recordo as palavras e ideias do realista Barry Posen, Professor de Ciência Politica e Estudos de Segurança no MIT, autor do livro Restraint: A New Foundation for U.S. Grand Strategy. Tive esperanças que com Donald Trump essas palavras passariam a ser realidade. Errei. Ao que parece “the swamp drained Trump”. Steve Bannon que o diga.




Last night President Trump tried to smooth over his decision to keep the Afghanistan failure going by saying the U.S. government is not going to "nation-build." Well, of course they're not. How many nations have they really built, or even improved? The U.S. tears nations apart. Perpetual war has had many different slogans over the last 100 years. - Ron Paul, 23 /08/ 2017

domingo, 20 de agosto de 2017

Da China - Parte II

Das reformas pós-Mao, sob a liderança de Deng Xiaoping, a mais abrangente foi a descolectivização da agricultura. Uma vez que cerca de 80 por cento da população chinesa são camponeses e a China permanece predominantemente rural, esta reforma afectou claramente a grande maioria de chineses. A propriedade privada ainda não existe; é ilegal comprá-la e vendê-la. Mas desde 1979, a maior parte do campo adoptou uma versão do chamado sistema de "responsabilidade doméstica", com muitas famílias ou agregados familiares a ficarem com a responsabilidade de cultivarem determinadas parcelas de terra, sendo obrigados a cumprir cotas estatais. Depois de cumprirem essas cotas, no eles são livres para utilizarem o excedente agrícola de qualquer maneira que julguem oportuno, inclusive vendê-lo nos mercados livres que proliferam. Em alguns casos, os contratos assinados por famílias com os responsáveis regionais são herdáveis.

A duração dos contratos entre as famílias e o estado foi prolongada em 1980 de 3 para 15 anos. Muitos camponeses reclamaram que, embora as novas reformas fossem bem-vindas, não tinham garantia de que o Partido não mudaria a sua politica, como tinha feito tantas vezes no passado. A liderança da reforma de Deng respondeu com os contratos de 15 anos, para dar aos camponeses um maior sentimento de segurança e estabilidade e para que eles tivessem incentivos para trabalhar e investir na terra que agora é praticamente sua.

Juntamente com o sistema de "responsabilidade doméstica", as parcelas privadas foram amplamente expandidas. Em muitas áreas constituem 15 por cento da área cultivada do total dos campos colectivos, em comparação com 5 a 7 por cento na era maoísta. As restrições sobre as actividades camponesas também foram substancialmente reduzidas. Por exemplo, a maioria das restrições à criação de porcos foi abolida, e em várias províncias não há restrições à criação privada de ovelhas e gado bovino. Dentro dos limites, os camponeses também podem agora contratar trabalhadores. Os mercados livres do campo foram expandidos desde o início de 1979, para as áreas urbanas. Os preços nesses mercados são determinados pela oferta e procura; qualquer produto das parcelas privadas pode ser vendido. 

Foram criados bancos para oferecer crédito especifico no mundo rural, de modo que empreendedores camponeses possam investir em sementes, fertilizantes e máquinas. Outro elemento-chave nas novas reformas agrícolas - talvez o principal - foi o aumento nos preços de compras estatais para os principais produtos agrícolas em 12 anos.

Estes incentivos criaram uma nova, embora pequena classe de camponeses ricos. Na imprensa chinesa lê-se que há camponeses que ganham mais de 10.000 yuans por ano, uma renda de pelo menos 20 ou 30 vezes a média nacional. Esta incrível variedade de novos incentivos rurais tem um impacto dramático na eficiência agrícola. A produção agrícola per capita, de acordo com uma estimativa americana, aumentou de US $ 166 em 1978 para US $ 226 em 1983, um ganho de cerca de 36% em cinco anos. Mesmo em 1983, um ano mau para a agricultura, os produtos agrícolas continuaram a crescer rapidamente; A produção de grãos atingiu 368 milhões de toneladas, um recorde !

É claro que num sistema político socialista é sempre possível para os líderes do Partido reverter a política e voltar ao sistema colectivo. Mas tal passo seria, no mínimo, enfrentar uma séria resistência e teria um impacto desastroso na produtividade, num país lutando para manter a produção de alimentos em linha com o crescimento populacional. Mesmo com as medidas draconianas para limitar o crescimento populacional, eles enfrentarão um problema alimentar cada vez mais difícil. A China tem um dos índices mais desfavoráveis de qualquer país do mundo; Enquanto a sua população cresceu em dois terços entre 1952 e o final da década de 1970, a quantidade de terras cultiváveis disponíveis per capita encolheu. Diante de uma restrição de terra tão grave, os líderes chineses terão grandes incentivos para continuar aumentando a produtividade dos camponeses. Assim, até mesmo para os elementos da Velha Guarda é difícil argumentar de forma convincente um regresso ao antigo sistema.

Uma segunda mudança importante na China é que as antigas prioridades "estalinistas" - na indústria pesada e na defesa - foram substituídas por novas prioridades na indústria leve, bens de consumo, agricultura e na elevação do nível de vida das pessoas. Desde 1978, a participação da indústria pesada na produção industrial caiu, muitas fábricas de defesa foram parcialmente ou totalmente convertidas para produzir bens de consumo e a produção de bens de consumo expandiu-se rapidamente. Há também uma proliferação de novos alojamentos; Em quase todos os lugares de Pequim e Xian vêem-se novos edifícios de apartamentos.

Com efeito, uma revolução no consumo está em andamento na China, particularmente nas áreas urbanas. A crescente classe média chinesa começou a comprar televisores e telemóveis que custavam o salário de um ano. Estão a comprar frigoríficos e moveis de sala que teriam provocado escândalo há alguns anos atrás. Mais de 90% da população chinesa tem agora acesso à televisão. Parte desta revolução também e feita pela autoridades chinesas que permitem comprar lotes de terreno em algumas partes das cidades e propaganda publicitária aos produtos - duas técnicas "capitalistas" para estimular o consumo que antes teria sido impensável. As grandes marcas capitalistas estão hoje presentes em todas as cidades que visitei e ninguém parece querer que seja de outra maneira.




quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Da China - Parte I

“Uma característica especial da civilização chinesa é que ela parece não ter um início. Perante a história, ela parece-se mais como um fenómeno natural permanente do que como um Estado-nação convencional. Na tradicional fábula do Imperador Amarelo, reverenciado por muitos chineses como o legendário soberano fundador do país, a China parece já existir. Quando o Imperador Amarelo surge no mito, a civilização chinesa está mergulhada no caos. Príncipes rivais atormentam não só uns aos outros como também o povo, mas um fraco imperador fracassa em manter a ordem. Recrutando um exército, o novo herói pacifica o reino e é aclamado imperador. 1 O Imperador Amarelo entrou para a história como um herói fundador; contudo, no mito fundador, ele está restabelecendo, não criando, um império. A China o antecede; ela avança rumo à consciência histórica como um Estado estabelecido exigindo apenas restauração, não criação. Esse paradoxo da história chinesa se repete com o antigo sábio Confúcio: mais uma vez, ele é visto como o “fundador” de uma cultura, embora frisasse que não inventara nada, que estava meramente tentando revigorar os princípios de harmonia que haviam outrora existido na idade de ouro, mas que haviam se perdido na era de caos político na qual o próprio vivia. Reflectindo sobre o paradoxo das origens da China, o missionário e viajante do século XIX, o abade Régis-Evariste Huc, observou:

A civilização chinesa se origina numa antiguidade tão remota que são baldados nossos esforços por descobrir seu início. Não há vestígios do estado de infância entre esse povo. Esse é um fato muito peculiar com respeito à China. Estamos acostumados na história das nações a encontrar algum ponto de partida bem definido, e os documentos, as tradições e os monumentos históricos que chegam até nós em geral nos permitem seguir, quase que passo a passo, o progresso da civilização, estar presentes a seu nascimento e assistir ao seu desenvolvimento, sua marcha adiante e, em muitos casos, suas subsequentes decadência e ruína. Mas não é assim com os chineses. Eles parecem ter vivido sempre no mesmo estágio de progresso dos dias atuais; e os dados da antiguidade tendem a confirmar essa opinião.

Quando os caracteres chineses surgiram, durante a dinastia Shang, no segundo milénio a.C., o antigo Egipto se encontrava no auge de sua glória. As grandes cidades-Estado da Grécia clássica ainda não haviam surgido, e Roma estava a um milénio de distância. Contudo, um descendente directo do sistema de escrita Shang ainda é utilizado hoje por muito mais de um bilhão de pessoas. Chineses de hoje conseguem compreender inscrições do tempo de Confúcio; livros e conversas chineses são enriquecidos por aforismos centenários que citam antigas batalhas e intrigas palacianas. Ao mesmo tempo, a história chinesa conheceu inúmeros períodos de guerra civil, interregnos e caos. Ao fim de cada colapso, o Estado chinês se recompunha como que por uma lei imutável da natureza. Em cada estágio, uma nova figura unificadora emergia, seguindo em essência o exemplo do Imperador Amarelo, para subjugar seus rivais e reunificar a China (e às vezes ampliar suas fronteiras). A famosa abertura do Romance dos Três Reinos, um épico do século XIV muito estimado ao longo dos séculos pelos chineses (incluindo Mao, que dizia debruçar-se quase obsessivamente sobre o livro em sua juventude), evoca esse ritmo contínuo: “O império, há muito dividido, deve se unir; há muito unido, deve se dividir. Tem sempre sido desse modo.” Cada período de desunião era visto como uma aberração. Cada nova dinastia recorria aos princípios de governo da dinastia precedente a fim de restabelecer a continuidade. Os preceitos fundamentais da cultura chinesa perduravam, testados pelo esforço da calamidade periódica” – Henry Kissinger; Sobre a China, (2011)



Com a morte de Mao Tse Tung em 1976, e particularmente desde o surgimento de Deng Xiaoping em 1978, os líderes pós-Mao tentaram desenvolver uma nova estratégia e novas instituições num esforço de modernização da China. Na economia, criaram um sistema socialista descentralizado e de "quase mercado" mais adequado às condições chinesas do que o sistema soviético altamente centralizado que adotaram em 1949. Talvez o passo mais significativo tenha sido uma descolectivização da agricultura.

Houve uma legalização de algum comércio privado e avanços na promoção da propriedade privada, particularmente nas indústrias de serviços, juntamente com um maior uso de mecanismos indiretos, como preços, em vez de quotas de produção para influenciar a alocação de recursos. E houve uma actualização da indústria leve e o início de uma impressionante "revolução do consumidor".

Na esfera política, os líderes pós-Mao tentaram uma maior estabilidade e confiabilidade para que a China nunca mais tenha que passar pelo caos da Revolução Cultural. As pessoas mais jovens, mais bem educadas e formadas profissionalmente estão substituindo lentamente a geração mais velha no Partido, no governo e no Exército, e os leais de Mao foram removidos do poder.

Uma revolução ideológica está também em andamento, com o igualitarismo maoísta a ser substituído por uma ênfase em incentivos materiais para o trabalho duro e o zelo revolucionário, dando lugar a uma busca pragmática de eficiência e produtividade. Um número brutal de novas leis foram introduzidas e a China, pela primeira vez desde 1949, está começando a formar um grande número de advogados. E há uma ênfase substancialmente nova no desenvolvimento da educação, particularmente na ciência e na tecnologia; Desde 1978, dezenas de milhares de estudantes foram enviados para estudar no exterior.

A maior diversidade cultural agora é tolerada; filmes estrangeiros, peças e livros que já foram completamente proibidos estão muito mais disponíveis. Existe um muito maior respeito pelo profissionalismo na China; Os intelectuais, outrora relegados ao fundo da sociedade revolucionária de Mao, recebem uma nova atenção e reconhecimento.

Estas reformas internas foram uma abertura do sistema às influências económicas e culturais estrangeiras numa escala sem precedentes - o que os chineses chamam de política de "portas abertas". Isto contrasta com duas décadas e meia de fechamento maoísta e "auto-suficiência".

O resultado geral tem sido um desmantelamento de muitas instituições e práticas maoístas e o início de um movimento para uma sociedade mais aberta. A analogia é impressionante entre a China desde 1978 e a União Soviética da década de 1920, sob a Nova Política Econômica (NEP). A China hoje se assemelha ao sistema pré-estalinista e não ao estalinista ou pós-estalinista.

É claro que estas mudanças devem ser vistas em contexto. Num período de apenas cinco anos, nem tudo mudou e muitos aspectos do sistema maoísta-estalinista da China permanecem. O alcance das mudanças variou consideravelmente de região para região dentro da China. E, assim como o NEP soviético foi eventualmente substituído pelo estalinismo, também o "NEP" chinês pode finalmente dar lugar a um sistema mais severo. No entanto, as mudanças que ocorreram são significativas e a direcção da mudança, se for sustentada, é muito encorajadora, tanto para o bem-estar da China como para suas relações externas.

O catalisador das reformas na China pós-Mao foi uma crise económica e social acompanhada por uma perda de confiança popular no Partido Comunista dominante e na sua ideologia. O evento catalítico foi, é claro, a Revolução Cultural, que decorreu de cerca de 1966 até logo após a morte de Mao.

A situação que os seus sucessores herdaram foi calamitosa. A economia estava em sérias dificuldades. A produção industrial era de baixa qualidade. A produção agrícola apenas acompanhava o crescimento da população e o consumo de alimentos per capita não melhorava desde a década de 1950: um líder chinês admitiu que 100 milhões de camponeses chineses não tinham comida suficiente para comer. Um jornal de Hong Kong  em 1979, publicou uma imagem ainda mais sombria: disse que 200 milhões de camponeses - um quarto da população rural - viviam "num estado de semi-inanição". O assédio contínuo aos intelectuais deixou a ciência e a tecnologia antiquada e um sistema educacional em ruínas. A sociedade estava desmotivada, exausta e sem esperança

Durante a Revolução Cultural, cerca de um milhão de pessoas foram mortas ou levadas ao suicídio. Milhões de outras foram enviadas para campos de trabalho ou a trabalhar em áreas rurais remotas. Em 1979, a própria legitimidade do governo do Partido Comunista estava em questão entre um grande número de chineses. Grande parte da geração mais nova afastou-se não apenas dos pensamentos de Mao, mas também de Lenine. Havia um desejo popular generalizado entre os jovens para libertar a China do totalitarismo de estilo soviético e movê-lo numa direcção genuinamente democrática. O respeito pelo Partido e o sistema socialista estava num mínimo histórico. E uma das burocracias mais rígidas e ineficientes na Terra parecia incapaz de respirar nova vida no sistema.

A imagem era desesperada, de modo que mesmo os líderes da Velha Guarda na China reconheceram que a sobrevivência política exigia uma acção drástica, Assim, os líderes pós-Mao embarcaram numa série de reformas radicais destinadas a elevar o nível de vida absurdamente baixo, abrir as válvulas de segurança para a insatisfação em massa e gradualmente restaurar a confiança popular no partido no poder.