segunda-feira, 24 de abril de 2017

Pensar a Líbia para agir na Coreia do Norte

Donald Trump afirmou hoje que a Coreia do Norte é “uma real ameaça para o mundo”. Para ele e para quem com ele está no governo norte-americano. “….a Coreia do Norte é um grande problema mundial. E é um problema que temos que resolver de uma vez por todas”, tendo apelado ao conselho de segurança da ONU para “tomar medidas”

Não vou aqui abordar se a Coreia do Norte é ou não um problema para o Mundo, (se bem que me parece que ela é essencialmente um problema para os desgraçados Norte-Coreanos). Essa é uma opinião que deixo para o presidente americano. Quero unicamente lembrar de que forma os EUA, os seus aliados ocidentais no Mundo e especialmente na Europa e a ONU, costumam resolver aquilo que eles unilateralmente decidem que é um “problema do Mundo”. Vou vos falar do caso particular da Líbia e da  doutrina da “responsabilidade de proteger” (R2P).

É aceite que a partir de 1989, os problemas e discussões associados à Segurança internacional mudaram. O fim da Guerra Fria e a emergente multipolaridade, promoveu – como previsto pelos autores neo-Realistas – um aumento dos conflitos entre os Estados, bem como, e de forma ainda mais acentuada, um aumento de conflitos internos, confrontando etnias, religiões, facções que, viviam juntas pela força ou pelo dinheiro transferido pelo Estado.

A tragédia na Somália em 1992, o genocídio no Ruanda em 1994 e a incapacidade de impedir o desastre étnico na Bósnia em 1995, colocaram as Nações Unidas (UN) numa situação delicada. A intervenção no Kosovo pela NATO em 1999 sem autorização da UN, foi o momento charneira para a comunidade internacional perceber que algo tinha que ser efectivamente feito para obviar situações desta gravidade de acontecerem.

Assim afirmou-se uma tendência para apontar que os Estados não podem isentar-se das suas responsabilidades quando perante desastres humanitários, mesmo que estes ocorram em países soberanos. Nesta tendência foi importante a contribuição de Bernard Kouchner, fundador dos médicos sem fronteiras, e o seu conceito de "droit d'ingérence humanitaire" ultrapassando a soberania dos Estados.

Os posteriores conceitos de segurança humana e mesmo de segurança individual, defendidos pela UN vêem materializar uma tendência da globalização e da pós-modernidade em que os Estados são instrumentos a serviço de seus povos, logo, a soberania estatal inclui, além de direitos, uma série de responsabilidade para com os indivíduos. Quando a população sofrer (ou estiver na iminência de sofrer) graves danos (sejam por resultado de guerras, rebeliões, repressão por parte do próprio governo ou pelo colapso de suas estruturas) e que o Estado não possa ou se recuse a evitar tal sofrimento, há responsabilidade subsidiária da comunidade internacional.

O caminho acima apresentado levou a implementação da norma da Responsabilidade de Proteger (R2P). Ela diz que se o Estado não é capaz de proteger sua própria população de atrocidades massificadas, ou não quer fazê-lo, essa responsabilidade recai sobre a comunidade internacional.

A Primavera Árabe começou no fim de 2010, de forma tímida na Tunísia, com uma onda de protestos contra o regime autoritário de Ben Alí, que se encontrava há mais de 20 anos no poder. Esta pequena insurgência causou um efeito dominó e abalou as autocracias e ditaduras no Magreb e Oriente Médio.

Estes eventos foram mais do que causados pelos problemas económicos de escassez e pobreza; foram verdadeiras reacções à falta de liberdade dos povos do Magrebe, após alguma liberalização social havida anteriormente na Tunísia e no Egipto.

A Líbia não fugiu a voragem de acontecimentos que varreram a politica do Norte de Africa. No entanto muitos são aqueles que dizem que a reacção do governo Líbio foi, no entanto mais violenta que a dos outros Estados envolvidos. Uma das visões diz-nos que a autocracia Líbia nunca tinha enfrentado este tipo de movimentos sociais nem tinha estruturas de amortecimento dos embates, ao contrário da Tunísia com uma tradição sindical que confrontou por largos períodos o poder e do Egipto que soube fazer concessões as elites insurgentes, reduzindo a violência. Na Líbia pelo tipo de regime e histórico os confrontos foram imediatos e com vitimas. Relatos de violência extrema e ataques ao seu próprio povo ecoaram mundialmente contra Khadafi.

Estes acontecimentos legitimaram a intervenção de forças internacionais na Líbia, que esteve a um passo de se transformar numa reedição do Kosovo. A Professora Maria Francisca Saraiva afirmou “A necessidade de evitar um desfecho desta natureza poderá ter pesado fortemente na decisão dos membros do Conselho de aprovar a resolução 1973 de 17 de Março de 2011 que autorizou “os Estados-Membros (…) a tomar todas as medidas necessárias para proteger os civis sob a ameaça de ataque na Líbia, incluindo Benghazi, excluindo uma ocupação estrangeira de qualquer forma em qualquer parte do território da Líbia. Na prática, o Conselho de Segurança permitiu a intervenção militar em solo líbio, mas deu à resolução uma redacção em muitos aspectos ambígua, o que viria a criar alguns problemas, (…) pois a operação teve uma execução operacional que excedeu em muito uma interpretação literal do quadro estabelecido pela Resolução 1973”.

Refere ainda esta autora que “…França e RU estariam tão empenhados numa presença militar na Líbia que admitiam a hipótese de avançar unilateralmente caso o CSNU não viabilizasse a entrada em acção da Aliança Atlântica. Neste sentido, a solução encontrada na resolução 1973 permitiu satisfazer os interesses franceses e ingleses, que desejavam entrar na Líbia a todo o custo, e ao mesmo tempo salvar a face dos membros do Conselho que não desejavam um Kosovo bis, uma nova operação militar da NATO fora do quadro multilateral das Nações Unidas.”

Seja de que forma seja, muitos são aqueles que não encontram na intervenção militar suportada pelas UN na Líbia e na adicional execução do seu líder, uma justificação sólida, dizendo que não houve qualquer genocídio ou massacres em larga escala com vincada orientação rácica ou étnica, indo mesmo mais longe e dizendo que havia um plano previsto para desestabilizar todo a região inclusive a Líbia. A Primaveras árabes seriam o epicentro desse plano.

Os factos são que esta intervenção não conduziu a uma transição democrática bem-sucedida, sendo exemplo de um tremendo falhanço da CI a endereçar este tipo de situações. O erro não foi tanto nos esforços pós-intervenção, mas sim na decisão de intervir. A lição para a comunidade internacional deve ser evitar as intervenções militares por razões humanitárias para ajudar os militantes nos casos em que o Estado está a atacar os rebeldes. Esses rebeldes têm incentivos para enganar as audiências internacionais, tanto sobre a magnitude e dimensão da repressão do Estado, bem como sobre a quantidade de apoio popular que esses grupos realmente possuem. Intervir pode resultar em aumentar o conflito e aumentar a quantidade de vítimas, como aconteceu na Líbia.

A Líbia é pelas normas internacionais um Estado falido e um território amável para milícias radicais com ligações ao terrorismo islâmico. Grande parte dos problemas com tráfico de seres humanos para a Europa têm origem na Líbia. O governo líbio está dividido entre duas facções que controlam áreas limitadas do território do país, e a situação dos direitos humanos deteriorou-se a níveisnão experimentados mesmo durante o regime de Kadhafi. Isto é de assinalar negativamente num país que já foi o mais rico e próspero de Africa.

Não será excessivo dizer que a Líbia foi transformada num Estado falhado por uma intervenção R2P mal pensada e mal produzida. É necessário produzir estratégias sendo primeiro necessário perceber os impactos/consequências ao nível do sistema político internacional que esta intervenção promoveu.

Será que Donald Trump está a ter em conta isto quando pretende intervir na Coreia do Norte ?

Para saber mais ler Saraiva, Maria F. (2014). A Líbia Pós-Kadhafi: Geografia, Segurança e Direitos Humanos. IDN Brief, julho, pp.11-14.



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